Por Mário de Queiroz, Agência IPS | Tradução: Cauê Ameni
“Enquanto o racismo na América voltou-se contra os antigos escravos africanos e indígenas, o racismo europeu sempre focou em seus antigos escravos ciganos. A atual perseguição na França e Itália confirma este fenômeno”.
A denúncia foi feita pelo antropólogo José Pereira Bastos, professor da Universidade Nova de Lisboa e anfitrião do encontro Ciganos no século XXI, que reuniu em Lisboa, em setembro, as principais organizações mundiais de defesa das comunidades ciganas.
Os membros da reunião anual da Gypsy Lore Society (Sociedade de Tradição Cigana), realizada na capital portuguesa, destacaram em uma resolução que a sociedade antropológica “vê como alarmante a adoção, pelas autoridades francesas e italianas, de uma retórica anti-cigana,.”
Também expressaram sua “redobrada preocupação pela política de expulsão, que pode desembocar em graves consequências para as relações entre as populações majoritárias europeias e as vulneráveis minorias ciganas”, explicou Bastos à IPS.
As políticas contra a população ciganaadotadas pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, e pelo primeiro ministro italiano, Sílvio Berlusconi, polarizaram as atenções do encontro da GLS na Universidade Nova de Lisboa, que reuniu organizações de 22 países.
O governo francês começou a implementar, desde agosto, um plano de destruição dos acampamentos ciganos em seu território e de expulsão massiva e forçada de ciganos à Bulgária, Romênia e outros países do leste europeu.
Trata-se de uma ofensiva muito semelhante à realizada pelo governo italiano desde 2008, com a diferença de que Berlusconi emitiu publicamente o seu assim chamado “pacote de segurança”, levando a expulsão de milhares de ciganos de seu território.
Os ciganos são a maior minoria na Europa, com uma população entre 10 e 16 milhões de pessoas — o que não impede sua criminalização e as cíclicas ondas de perseguição.
Na reunião de Lisboa, estiveram presente representantes de grupos vinculados aos ciganosda Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, Bulgária, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grã Bretanha, Hungria, Itália, Islândia, Japão, Polônia, Portugal, Romênia, Servia, Suécia, Suíça e Turquia.
José Pereira Bastos frisou que as organizações nunca adotaram posturas no campo estritamente político. Afirmou, porém, que nesta ocasião não podia deixar de criticar as perseguições étnicas à comunidade romena pelos governos de Paris e Roma.
Com 120 anos de existência, a GLS é “a sociedade cientifica mais antiga do mundo na área da antropologia. Nasceu em 1888, em Londres. Em 1989, transferiu sua sede para os Estados Unidos, e desta vez condena as medidas adotadas em França e Itália”, explicou.
O acadêmico recordou que os ciganos foram os escravos da Europa desde que o sultão de Ghazni (região atual do Afeganistão) começou a fazer incursões no norte da Índia, capturando os povos que ali viviam.
No inverno de 1019/1020, o sultão conquistou a cidade sagrada de Kannauj, “nessa época uma das mais antigas e letradas da Índia, capturando milhares de pessoas, e vendendo-as em seguida aos persas”, explicou o antropólogo e ativista. Por sua vez, os persas os venderam para países hoje situados no leste europeu .
“Sabe-se que 2.300 deles foram colocados em uma zona dos principados cristãos ortodoxos da Transilvânia e da Moldávia, que hoje representam dois terços da atual Romênia. Lá, foram convertidos em escravos do príncipe, dos conventos e dos latifundiários rurais”, disse o anfitrião da GLS.
Durante as perseguições do século 15, contra judeus e muçulmanos, começam também a “caçar” os ciganos, “pois eram considerados vagabundos e delinquentes”“Na Alemanha e Holanda, eram exterminados a tiros por caçadores pagos por cabeça”, recordou, para afirmar que “na Europa, o proposito de extermínio dos ciganos sempre foi muito claro”.
A antropóloga Daniela Rodrigues, integrante da organização não-governamental SOS Racismo e participante do encontro, assegurou à IPS que as expulsões dos ciganos na região da França e Itália correspondem a “uma estratégia política populista”.
Daniela trabalha na promoção de escolarização da população infantil cigana, em Portugal. Explicou que uma de suas principais tarefas é “a mediação com as famílias, para incentivá-las a que enviem seus filhos as escolas”.Pois “a baixa escolaridade cigana tem a ver também com sua própria percepção, onde muitos deles pensam que ir a escola os fazem perder sua indenidade étnica”.
Este fenômeno “é muito mais frequente entra as meninas que entre os meninos. Quando uma cigana tem um alto nível educativo, sua própria comunidade começa a dizer que ela já deixou de ser cigana, olhando a com um certo desprezo”, detalhou.
Daniela assegurou que em Portugal “existe também uma discriminação contra os ciganos, especialmente por parte da policia, que quando faz vistorias nas feiras, seleciona preferencialmente os comerciantes romenos”.“Mas a diferença com a França e Itália, é que as operações para o controle de estrangeiros indocumentados não os têm como alvos principais”, explicou.
Nos casos francês e italiano, “ao invés de fazer um controle de imigração em geral, com todos indocumentados, o que fazem são operações contra uma minoria étnica especifica, que obedece a uma estratégia populista”, completou Rodrigues.
Outra diferença fundamental é que Portugal “optou por adotar um sistema de bairros populares mistos, construídos com a perspectiva de que os ciganos convivam com africanos, brasileiros e portugueses brancos e mestiços. Há menos descriminalização, à medida em que crescem juntos”, sublinhou.
Num documento apresentado no encontro, o espanhol Santiago González Avión, diretor na Galícia da Fundação Secretariado Gitano (FSG), colocou o dedo na ferida sobre as divisões entre as próprias comunidades ciganas.
“Entre os ciganos de nacionalidade espanhola, a fragmentação é forte. Galegos e castelhanos dividem-se. E há discriminação também entre os ciganos transmontamos, de nacionalidade portuguesa, e os espanhóis, apontou González.
O documento também denuncia as condições de precaridade social, como a pobreza econômica e a exclusão social destes grupos.
O diretor da FSG lamenta que “os ciganos do leste europeu não tenham estabelecido laços mais fortes com as populações restantes. Produz-se uma fraqueza para o movimento cigano de se articular para reivindicar direitos de cidadania e políticas inclusivas.”
“São as politicas gerais, de caracter inclusivo, as que maiores efeitos tinham na melhora das condições de vida e no reconhecimento dos direitos das popuplações ciganas”, explica.
E estes projetos de inclusão “promovem o que se conhece pela lógica do acesso, mas não a lógica de enraizamento: sentir como suas políticas e incorporá-las as agendas pessoais e às estratégias de grupo”, conclui González.
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