bbb

Nem sempre a arte imita a vida

Livros e quadros, às vezes com leituras distorcidas, ajudaram a criar o imaginário cigano. Os povos errantes são apresentados como criminosos e cheios de malícia

Medo, preconceito, mistério e sedução sempre rondaram a trajetória dos ciganos. Os estigmas passaram das ruas para a literatura de cronistas, viajantes e escritores que, em suas obras, apresentam os ciganos como ladrões, trapaceiros, sujos. Não faltam atributos negativos.

O escritor Machado de Assis, no clássico Dom Casmurro, publicado pela primeira vez em 1899, usa a expressão “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” para o personagem José Dias (o agregado da família de Bentinho) definir os olhos da jovem Capitu.

No livro Grande sertão: veredas, escrito por João Guimarães Rosa em 1956, o jagunço Diadorim chama de “bruxa feiticeira” a personagem Ana Duzuza, “falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente”. A mulher tinha revelado ao jagunço Riobaldo, sem autorização, os planos de Medeiro Vaz de atravessar o diabólico Liso do Sussuarão, uma planície rasa da região.

A editora e antropóloga Florência Ferrari, doutoranda da Universidade de São Paulo (USP), lembra que em três dos contos de Tutameia – O outro ou o outro, Faraó e a água do rio e Zingaresca, Guimarães Rosa também recorre aos ciganos. No primeiro, o autor descreve a ida de um delegado e seu sobrinho, o narrador, a um acampamento de calons que viviam de tropas, tachos de metal e adivinhação.

“O delegado gajão (não cigano) vem tirar satisfação com o calom seu amigo: uma denúncia de furto que lhe diz ‘desrespeito’”, contextualiza Florência, em artigo sobre o assunto. “Prebixim, o protagonista, ‘com manhas sinceras, arranjadinho de vantagens’, diz ao delegado: ‘Faço nada não, gajão meu amigo. Tenho só o outro ofício (...) É o que não se vê, bah!, o de que a gente nem sabe. O contrário do contrário, apenas’”.

O contista alemão Hermann Hesse, na publicação Narciso e Goldmund, de 1930, cria a personagem Lisa para iniciar o belo Goldmund, aluno de um convento, nas artes do amor. Ela seria uma andarilha casada, que costumava ser espancada pelo marido, e passa uma noite fora de casa, na floresta, com o rapaz.

É uma imagem bem diferente das ciganas, que só fazem passeios acompanhadas de parentes. Toda mulher precisa pedir permissão para sair aos homens da casa. A casada, por exemplo, só vai ao shopping center com filhas, cunhadas ou sogra. “Sempre com a família do marido”, revela Josileide Alves Martins, 26 anos, moradora da cidade de Juazeiro (BA).

“O cigano é muito apegado à família. Não estupra, não assalta, respeita os velhos e as crianças, não toma a terra de ninguém. Quando rouba um porco ou uma galinha, é para comer”, descreve Pedro Alves Cabral, 52 anos, 11 filhos, que mora em uma das comunidades ciganas de Sousa (PB).

Se na literatura eles são tratados como a escória da sociedade, as artes e a música pincelaram a ideia romanceada de um povo livre e colorido. Um dos quadros do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que acompanhou por três anos a missão do barão russo Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852)) ao Brasil, retrata os ciganos em cenas que até hoje habitam o imaginário coletivo: dançando lascivamente em torno de uma fogueira, ao som de instrumentos de corda.

Noutro, Rugendas mostra um aspecto menos abordado do povo cigano nas artes em geral: o de gente trabalhadora. Há mulheres carregando trouxas de roupa, homens transportando cavalos, vendedores de frutas. Já o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), autor de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-1839), registrou mulheres ciganas ricas e igualmente sensuais, enfeitadas por laços de fitas coloridas e joias, emoldurando uma cena de comércio de escravos, uma das atividades atribuídas a esse povo no período colonial. Mais realista, o paulista Cândido Portinari (1903-1962) revela ciganos de traços marcantes em obras como o desenho Cabeça de ciganos.

Na vida como ela é, os relatos passam longe das telas ilustradas. “A gente ficava andando de um canto para outro, levava chuva, tinha de roubar galinha dos outros para comer, era um trabalho desgraçado”, recorda Manoel Alves da Silva, 66, que hoje vive sossegado em Petrolina, Sertão de Pernambuco.

Josefa Maria da Conceição Silva, 70, também ajuda a desmistificar a imagem do cigano. “É uma vida muito sofrida. Eu paria o filho no fim da tarde, nas estradas, e no outro dia de manhã já estava trabalhando. A gente andava a pé ou em lombo de animal”, relata.


Museu da Cultura Cigana
O museu destaca por meio de grandes telas e painéis em impressão digital, a história dos diferentes povos ciganos além de retratar o quanto essa cultura influenciou a música, as artes, a culinária e as danças em diferentes povos.
Faz parte da programação, a realização de cursos práticos e teóricos, conferências, debates, seminários sobre as tradições ciganas e além de promover intercâmbio com instituições congêneres do Brasil e do exterior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário